Tomar. Memórias de Saramago

No início dos anos 80, fiz várias viagens de exploração de norte a sul do nosso país, de comboio, de autocarro, de carro de aluguer e muitas vezes a pé, sempre acompanhado pelo «Guia Rude de Portugal» que, apesar do nome, estava escrito de forma suave, com informações perspicazes não só sobre a arquitetura histórica, mas também sobre o tecido mais importante do povo português que aqui viveu com risos, lágrimas e fadigas.

Inevitavelmente, o meu caminho conduziu-me a Tomar, onde cheguei numa noite húmida de outono para me alojar numa residencial com poucas comodidades, mas a manhã foi abençoada por um sol radioso e encontrei o que o meu Guia descreveu como uma notável cidade medieval, repleta de pessoas que assistiam ao mercado semanal. Nas bancas, uma variedade aparentemente interminável de produtos e equipamentos agrícolas, utensílios domésticos, vestuário e calçado tradicional, artesenatos e colecções intrigantes de bricabraque, tudo isto era uma revelação do que era considerado essencial para a existência no Portugal de meados do século XX, para ser saboreado lentamente enquanto se toma o pequeno-almoço de uma tosta mista com várias bicas.

Durante os três dias seguintes, seguiu-se a habitual ronda de visitas aos muitos locais recomendados no meu Guia, apesar do risco de ter de encontrar chaveiros com horários excêntricos para aceder às «jóias», muitas vezes mal conservadas ou fechadas para reparação.

Agora, mais de quarenta anos depois, tive a curiosidade de reabrir «Uma Viagem a Portugal» de José Saramago para ver como a sua descrição de uma visita a Tomar coincidia com as minhas recordações. A narrativa consumada é escrita no mesmo estilo acerbo, espirituoso e por vezes sarcástico que lhe valeu um Prémio Nobel da Literatura, mas é duradoura na demonstração do seu profundo amor pelos seus concidadãos e pela sua orgulhosa história. O livro cobre uma viagem que demorou seis meses a concluir, terminando na primavera de 1980, pelo que é contemporâneo da minha própria deambulação.

Antes de entrar em Tomar, O Viajante atravessou as «águas límpidas, profundas e verdes» da albufeira de Castelo do Bode para passar duas horas na Estalagem da Ilha do Lombo que se encontra no que restou de uma pequena colina após a construção de uma barragem que inundou o vale do rio Zêzere. Comparou este local a «deixar o mundo para trás, descendo o rio Letes do esquecimento para entrar no Nirvana; um refúgio de paz que não tem medida», descrição que partilho inteiramente porque foi na margem norte da ilha que escolhi construir uma casa idílica onde vivi durante dezoito anos em esplêndido isolamento.

Tomar, onde o viajante passa a noite num hotel do Parque do Mouchão: «um oásis fresco de choupos altos e bétulas verdes e brancas. Quem transformou um banco de areia neste refúgio merece uma medalha». À noite, janta no restaurante Beira-Rio, situado do outro lado do rio Nabão, com vista para a famosa roda de água que se diz datar do tempo dos mouros. Ele conta que comeu bem e teve a sorte de ser servido por «um garçom de ar sério que, quando sorria, tinha a cara mais feliz do mundo – e sorria muito». Eu também comi nesse restaurante em 1983 e fui amplamente recompensado pelo ambiente que ele compartilhava com vários outros próximos. São restaurantes como estes, cada um com o seu acolhimento, que fazem com que nos sintamos «amigos da família».

A narrativa de Saramago é polvilhada de outras anedotas que aquecem a sua evidente grande humanidade. Regista o envolvimento de um guardião do Convento e da sua singular Charola numa conversa em que este se queixa do «ar geral de decrepitude que advém da idade e do abandono. Uma das jóias mais preciosas de Portugal corre o risco de se apagar«. A explicação dada pelo guia é que isso se deve, em parte, às muitas festas de casamento que ali se realizam. Encolhe os ombros, abatido, e diz: «Os convidados vêm encostar-se aos pilares, trepam para ver melhor e depois divertem-se a arrancar bocados de gesso pintado para terem como recordação».

Considera que o portal de João de Castilho é uma das mais magníficas obras de arte existentes em Portugal e que não pode ser adequadamente descrito ou explicado por palavras – «mais parece um poema de Camões gravado na pedra».

Saramago descreve alguns dos outros «pontos turísticos» de Tomar com um misto de perspicácia e exasperação. Apreciador dos painéis pintados por Gregório Lopes na igreja de S. João Batista, Saramago fica aborrecido por ver que a grade do batistério está fechada e que só pode ver uma pequena parte do Batismo de Cristo. Igual à minha experiência, Saramago constata que a capela de Nossa Senhora da Conceição está firmemente fechada até domingo, o único dia em que está aberta a fiéis e visitantes.

No entanto, O Viajante está mais empenhado em encontrar a sua alma do que em escrever um guia convencional e decide seguir viagem até Ourém, fazendo apenas uma breve paragem no caminho para ver o aqueduto de Pegões Altos: «os arcos perfeitamente arredondados são a prova de que utilidade e beleza não são incompatíveis».

Provavelmente, a recente sugestão de nomear Tomar como a capital portuguesa da espiritualidade teria sido tratada com desdém por Saramago, um agnóstico que tinha respeito e grande conhecimento da santidade dos edifícios. É a sua admiração pelo espírito e pelo carácter do povo português que transparece nos seus escritos, nomeadamente pelos dignos nabantinos de outrora!

Por Roberto Cavaleiro. Publicação original no site www.theportugalnews.com

IMAGEM: Tomar, rua da Sinagoga. (FOTO: Facebook). Tomar nació templaria por orden de Afonso Henriques. En 1357, pasó a ser sede de la Orden de Cristo (antes llamada del Templo), que hizo del Convento de Cristo su sede. Se trata de una construcción periurbana, implantada en lo alto de una elevación que domina la planicie donde se extiende la ciudad. Está circundado por las murallas del castillo de Tomar. Ambos elementos fueron declarados Patrimonio de la Humanidad en 1983.

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