O eu e o outro na encruzilhada da comunicação

Confrontado mais uma vez com um irrecusável convite do amigo Manuel Ambrosio Sánchez, digno Alcalde de Morille, aqui estou pronto a partilhar convosco alguns pensamentos, desta feita relativos ao processo de saída do nosso eu profundo rumo à interioridade dos outros através da salvífica comunicação.

Em primeiro lugar quero dizer-vos que trago da RIONOR (Rede Ibérica Ocidental para uma Nova Ordenação Raiana) um forte abraço solidário recheado de ressonâncias transfronteiriças, que se enquadra à maneira na vivência ibérica deste festival.

El PAN es un encuentro festivo y de convivencia entre creadores (poetas, artistas y especialistas de diversos campos y disciplinas) y vecinos y visitantes de Morille (Salamanca) y una freguesía o concelho luso, que se celebra cada año durante dos fines de semana del mes de julio.

Pedia-me o meu amigo para abordar a comunicação ao nível dos princípios, o que me assustou deveras, dando-me depois toda a liberdade para deixar fluir as palavras à medida que brotassem do meu pensamento.

As palavras comunicação e expressão estão recheadas de ressonâncias salvíficas, pois prometem-nos à partida a saída da nossa ipseidade ou do nosso eu profundo e vencer, ainda que transitoriamente, a solidão em que irremediavelmente estamos encerrados, rumo à ipseidade que os outros também possuem.

É através da expressão da linguagem, encarada esta num âmbito muito amplo, que a comunicação se processa, mas conseguiremos uma linguagem inequívoca, capaz de transmitir o que de facto pensamos? Ou é a linguagem, como confessava a Raposa ao Principezinho de Antoine de Saint Exupéry, “fonte de mal entendidos?”.

«Comunicando» fue el lema del PAN 2017 (Encuentro y Festival transfronterizo de Poesía, Patrimonio y Arte de Vanguardia en el Medio Rural).

Desde a antiguidade clássica que os filósofos indagam se são os nomes convenções atribuídas pelos homens para se entenderem, ou se ao  invés, estão os nomes naturalmente relacionados com as coisas. Sem retomar aqui estas velhas discussões, talvez tenha razão Heidegger quando propõe que não é o discurso da ciência, nem o da técnica, mas a palavra dos poetas onde se dá a irrupção do ser, tornando-se a poesia a linguagem o modo verbal do Ser.

É o homem um animal que fala e é a linguagem, enquanto o ser do homem tornado consciência de si próprio, que lhe possibilita a abertura para a transcendência. No entanto aqui temos de nos questionar se somos capazes de tornar transparente o nosso eu mais profundo, quando nos agarramos aos conceitos palavras ou jamais o podemos conseguir, precisamente porque essas regiões profundas do nosso Ser pertencem ao domínio do indizível.

Nesta encruzilhada a que acabamos de chegar, parece-me útil recorrer ao filósofo Paul Ricoeur e às suas propostas no domínio da interpretação, num esforço constante de ida e volta da explicação à compreensão e desta à explicação.

Um dos pontos de partida de Ricoeur, aliás de importância fundamental, é o de considerar que o conhecimento de si mesmo, mesmo para o próprio sujeito, é uma interpretação, através da linguagem, dos signos e dos símbolos e que a narrativa é a mediação privilegiada para essa interpretação. Defende Ricoeur que, através da ficção, mesmo duma vida real tornada ficção, como no caso das biografias ou autobiografias ficcionadas, se torna muito mais transparente e inteligível essa mesma vida, o que não consegue o ensaio mais objetivo.

Já temos aqui matéria mais que suficiente para analisar ao longo de um seminário académico, para quanto mais para uma breve partilha de ideias entre amigos ibéricos.

Para prosseguir com as reflexões a que estas linhas iniciais me forçam, e o convite que me foi feito dava-me liberdade total de ação, tenho de partir das minhas vivências, pois é sobre elas que tenho construído a minha visão do mundo.

Com estas advertências, entro de imediato no assunto em questão, relembrando uma frase que anda hoje muito em voga, uma imagem vale por mil palavras, frase que não subscrevo e à qual me atrevo a contrapropor a sua inversa, ou seja, uma palavra vale por mil imagens.

Vivem as nossas sociedades uma primazia da imagem e esta apesar de abrir a muitos ângulos e a de ampliar a visão do real, acaba por ser uma fonte de opacidade e de cegueira, como tentarei mostrar adiante.

No mundo de hoje somos bombardeados com imagens e mais imagens que a todo o momento temos de remeter para as calendas gregas, pois todos sabemos que a nossa capacidade de gerir as informações que entram pelos nossos sentidos é limitada, existindo em todos nós a discriminação seletiva e inconsciente, através da qual conseguimos o equilíbrio para continuar a vida.

Para mostrar que as pessoas andam cansadas de imagens, basta lembrar aqui a resposta que os meus amigos me costumam dar, sempre que lhes peço para me lerem um texto: “Mas queres que te leia isto tudo?”

Felizmente existem hoje os computadores, escravos incansáveis que são capazes de ler palavras infinitas sem se cansarem.

Como na minha relação com os outros não tinha acesso à maior parte dos gestos e das expressões faciais e corporais, pelo facto de ser cego, vi-me na necessidade de desenvolver um estudo das vozes para tentar ver para lá das palavras que escutava e os resultados foram fascinantes.

Posso dizer-vos que através das vozes tenho acesso à interioridade dos meus interlocutores, com uma precisão cirúrgica, passe a imodéstia e o exagero.

De acordo com a minha experiência, posso adiantar-vos que dificilmente as vozes me enganam e através delas consigo saber se os meus interlocutores estão tristes, alegres, cansados, eufóricos ou terrivelmente aborrecidos. E isto porquê?

Penso que nas nossas sociedades atuais, precisamente pela importância que demos ao sentido da visão em detrimento de todos os restantes, encontrámos estratégias para disfarçar os sentimentos mais profundos através da aparência visual, e esquecemo-nos de encontrar estratégias para mascarar as vozes que ficam assim desprotegidas e são capazes de trair o mais forçado e estudado sorriso. Infelizmente este domínio está muito pouco estudado, muito embora seja de uma importância fundamental.

No domínio da comunicação e da expressão, da abertura aos outros a cegueira é apenas uma limitação entre outras e já assim as pessoas são levadas a pensar que uma pessoa cega vive na escuridão, no isolamento, na tristeza, ideias que infelizmente durante séculos foram associadas à deficiência visual e que escritores como Saramago tentaram reabilitar e propagar.

Nas questões da comunicação e da expressão, no meu entender, devemos partir para os outros com uma atitude de espanto, de abertura plena ao mistério, o que nos porá ao abrigo de encerrar todos os que evidenciam alguma diferença, nos famigerados e redutores estigmas donde dificilmente se conseguem libertar.

Para ilustrar estas minhas palavras, quero-vos falar de uma experiência que tive quando fui diretor da Revista Luís Braille e que foi a de entrevistar um jovem com 22 anos que era cego e surdo ou seja surdo cego.

Teve este jovem a felicidade de  ter uns pais analfabetos que foram os melhores pedagogos que já conheci. Teve também a sorte de ter excelentes professores das equipas de Ensino Integrado na Escola de Caldas da Rainha, de onde era oriundo.

Na entrevista que lhe fiz, constatei a alegria de viver e a importância das vivências para aquele jovem que não via e não ouvia.

Os seus pais eram grandes pedagogos, porque apesar de não saberem ler, compreenderam que o melhor que tinham a fazer ao seu filho era dar-lhe o maior número possível de vivências, como se tivessem escutado as palavras do filósofo Manuel Garcia Morente quando nos explica o que é uma vivência. Diz ele que podemos ter um conhecimento de Paris através da consulta de mapas e de fotografias, de fazer um estudo histórico, geográfico, sociológico, etc., mas tudo isso é apenas um conhecimento intelectual e que está muito longe de uma vivência que é a de  passear a pé vinte minutos por uma rua de Paris.

Graças às vivências que os pais lhe proporcionaram, levando-o a pescar na Lagoa da Foz do Arelho, às festas das Caldas da Rainha e aos jogos de futebol no estádio da Luz, o Carlos transmitia-me por gestos e por palavras em braille ou a negro que me escrevia na palma da mão, as ondulações do barco, os foguetes nas festas das caldas e a alegria de festejar os golos no Estádio da Luz.

A par deste exemplo temos a grande Helen Keller que mostrou ao mundo a importância que cada ser humano encerra e que a atitude de reduzir os portadores de deficiências a um estigma, pode levar a grandes injustiças sociais e a grandes perdas de contributos para o bem da humanidade.

Cheguei a estas conclusões na reflexão sobre as experiências que a vida me proporcionou e foi reconfortante constatar os resultados idênticos a que chegaram filósofos como Georges Gusdorf no livro «A Palavra», onde escreve: “Na realidade, a visão põe-nos em contacto com a natureza, mas a audição é o sentido específico do mundo humano.”

Este autor fundamenta ainda a sua primazia dada à palavra com a análise dos afásicos que é uma limitação que vai muito para lá da mera impossibilidade de articular palavras e o caso dos surdos, situação que eu próprio constatei. Na sua obra «A Palavra», cita mesmo Montaigne que afirma que aceitaria melhor ficar privado da visão do que da audição.

De facto, os nossos amigos surdos, sobretudo os surdos congénitos, apesar de terem acesso à imagem, à informação escrita e à gestual, defrontam-se com grandes dificuldades para aceder a domínios como os estudos universitários filosóficos, o que não sucede com os cegos. Faço estas afirmações com grande seriedade e respeito pelos surdos com quem trabalhei enquanto fui 8 anos presidente da Federação de desporto para Deficientes e que me orgulho de ser uma das poucas pessoas que fizeram todos os esforços para os compreender e integrar na Federação, como eles o reconheceram apelidando-me de pai dos surdos.

Nestas questões da comunicação, fundamental para manter o espírito do Festival PAN e associações como a RIONOR, gostaria de sublinhar que se queremos avançar na aproximação e cooperação entre portugueses e espanhóis temos de fazer esforços permanentes para que a comunicação se estabeleça.

São muitos os equívocos a que nos levaram estes mal-entendidos e que se não fizermos esforços para os ultrapassar continuarão a ser um obstáculo sério ao nosso trabalho.

Graças ao facto de ser raiano e de ter estudado filosofia em Lisboa mas com acesso aos livros gravados e em braille em castelhano que a ONCE me forneceu, pude, quando fui dirigente da ACAPO, fazer um trabalho de cooperação e aproximação entre a ACAPO e a ONCE que ainda hoje está a dar os seus frutos.

Os portugueses pensam que falar castelhano é apenas abrir as vogais e ler o jota em castelhano e o v em b, o que acarreta por vezes grandes momentos de comicidade. Todos já constatámos situações dessas, como aquele dia em que uma amiga minha em Lisboa perguntou inocentemente a uma grávida que estava indisposta: e porque é que estás embaraçada? Ou o caso de um outro português que traduziu a salada aliñada por salada ordenada em caixas, ou ainda  um outro que ficou ofendido por amigos espanhóis lhe terem dito que o jantar que lhes oferecera estava exquisito.

Por todas estas razões é prudente que cada um de nós, muito embora por mais longe que vá, dará sempre erros, mas que faça um esforço para comunicar com um mínimo de mal-entendidos. Devem também os espanhóis estudar o português, o que felizmente se verifica cada vez mais.

Trago aqui estas questões, pois apesar de muitos portugueses dizerem que os espanhóis não gostam dos portugueses, a verdade é que as situações que tive oportunidade de analisar eram tão só problemas de comunicação. Quando um espanhol me respondia às minhas questões: entendes o que este amigo te está a dizer em português? E o questionado me respondia: “Entiendo trozos”, para mim estava tudo dito: não entendia nada, pois o esforço de entendimento já tinha sido desligado havia muito.

Termino concluindo que é a comunicação a tábua de salvação de sairmos da nossa irremediável solidão e que teremos de fazer esforços sempre permanentes para nos colocarmos no ponto de vista dos outros e para colocar a questão: será que entendi bem? Se assim procedermos, antes de avançar para as costumeiras condenações e julgamentos alheios, teremos dado um passo significativo adiante, ou seja, rumo ao outro.

Muito obrigado.

Francisco Alves

Presidente da RIONOR (Rede Ibérica Ocidental para uma Nova Ordenação Raiana)

IMAGEM: Cementerio de Arte de Morille – Salamanca

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