Nos passos de Diego de Torres: Notas de um fotógrafo

Só quando dou os primeiros passos na Cañada Real, esse velho caminho de transumância, começo a refletir no que ficou para trás. Salamanca parece-me cada vez mais uma dessas miragens, próprias de terras planas e horizontes longínquos, à medida que me adentro no mar de azinheiras que forma a dehesa salmantina. O contraste não podia ser mais evidente: ainda há pouco, absorvia um arco-íris de estudantes, turistas e idiomas a fluir animadamente pelos arcos da Plaza Mayor; agora, a escassos quilómetros dali, dou comigo cercado por vacas moruchas, sem qualquer humano à vista e mergulhado num silêncio tão quieto que se ouvem as moscas.

Encontro-me no início do Caminho de Torres, uma rota para Santiago de Compostela com cerca de 600 quilómetros, percorrida e descrita em 1737 por D. Diego de Torres Villarroel – escritor, poeta, dramaturgo, médico, matemático, sacerdote e catedrático da Universidade de Salamanca – uma personagem tão versátil quanto aventureira e envolta em polémicas. Não faço este caminho movido pela fé ou no cumprimento de qualquer promessa ao santo – como o próprio Torres – mas porque fui incumbido de captar as fotografias que servirão de base à divulgação deste ainda desconhecido percurso.

Os tetos altos das Catedrais, as torres da Clerecía e as paredes trabalhadas da Universidade deram subitamente lugar ao frondoso montado de azinho e sobro, como se a ponte romana do Tormes fosse um portal entre mundos distintos. O meu cérebro tenta agora esbater as formas urbanas para se concentrar na natureza, que domina por completo este novo território. Ao longo de vários dias, procuro nas diferentes ganadarias silhuetas de touros pretos, sigo rebanhos de ovelhas em prados intermináveis, adivinho porcos ibéricos camuflados na sombra das azinheiras, e aguardo pacientemente a luz rasante da tarde para captar a paisagem.

Sempre que tenho sede ou a fome aperta, perscruto o horizonte em busca de campanários distantes – igrejas e capelas que funcionam como faróis na navegação desta indistinta planura. As aldeias estão desertas e os poucos transeuntes que ousam pisar o cimento quente têm uma idade avançada; boa parte da população partiu para outros destinos e o punhado que ainda aqui faz vida está disperso pelas enormes propriedades agrícolas que se estendem a toda a volta. Longe de monótona ou triste, esta parte do Caminho traz-me à memória o nome de um livro de fotografia: “Esplêndido Isolamento”. E é neste espírito que sigo até Ciudad Rodrigo, onde reencontro a monumentalidade na Catedral de Santa Maria e um número de habitantes que já não consigo contar pelos dedos.

A entrada em Portugal é marcada por uma paisagem diferente, áspera e indomável, mais rochosa do que verde, e onde o relevo se faz sentir, pouco a pouco, nas pernas do peregrino. Se isto não bastar para perceber a entrada noutro território, sucedem-se fortalezas e castelos – Almeida, Pinhel e Trancoso – a relembrar fronteiras e preocupações defensivas de outros tempos. Esta parte da Beira Alta traz também cenários de vinhas, desenhadas a esteios, arames e cepas baixas, num aprumado aperitivo do Douro, que nos espera mais à frente.

Para já, outros rios: o Côa, e depois o Távora, vão emprestando alguma frescura e fertilidade ao granito das encostas, que também é a pedra dominante no património edificado da longa lista que me entregaram. A maior parte são obras humildes da arquitetura religiosa e civil, que abrangem várias épocas e que testemunharam a passagem de peregrinos ao longo dos séculos. Cruzeiros, pelourinhos, capelas e igrejas – muitas com a figura de São Tiago no interior – juntam-se a pontes romanas e medievais, sendo a mais curiosa destas a que atravessa o rio Varosa na povoação de Ucanha. Sentado na margem, a observar rãs e libélulas, que também compõem o retrato natural do Caminho, penso na vista que se alcança da peculiar torre acoplada à ponte. Aos belos soutos de Sernancelhe, que pude ver no esplendor dourado do outono, seguem-se pomares de macieiras que vão delineando a estrada a partir de Moimenta. Fotografei-os logo na brancura da flor, depois em fruto – amarelo ou vermelho – e finalmente num dezembro gélido e deserto de gente, com maçãs esquecidas nos ramos, como se fossem bolas de um Natal antigo. É esta imagem – de filas paralelas de macieiras – que me acompanha até Lamego, onde outro castelo, uma catedral e o conhecido santuário de Nossa Senhora dos Remédios assinalam o início da acentuada descida em direção ao Douro e o reaparecimento em força da paisagem vinhateira.

O Douro representa o reencontro com uma região que me é familiar e que será do conhecimento de um maior número de peregrinos de Santiago, porque o Caminho de Torres entronca aqui noutros percursos que vêm do centro e do sul de Portugal.

Até à entrada na Galiza seguem-se terras que também cruzei várias vezes, obrigando-me a um olhar mais exigente a cada nova visita: um dos grandes desafios – e benefícios – da fotografia. Foi com esta renovada curiosidade que percebi melhor a vertente sul da serra do Marão, com os cumes mais altos a espreitar por cima das nuvens, e que captei a luz dourada sobre os penedos solitários do Alto de Quintela, já depois de Mesão Frio; em Amarante, registei toda a variedade de doces regionais, mas reservei espaço para o famoso pão-de-ló de Margaride, fabricado em Felgueiras; e até alcancei Guimarães através de uma calçada romana e um mosteiro – de Pombeiro – dos quais nunca ouvira sequer falar.

Juntamente com Salamanca e Santiago de Compostela, Guimarães é uma das três cidades Património Mundial que o Caminho de Torres atravessa. Percorro devagar o centro histórico, em novas abordagens visuais ao singular Paço dos Duques ou entrando na igreja da Oliveira só para ver a luz bailar suavemente sobre um tapete vermelho. São também detalhes simples que me atraem, já em Braga, à livraria Centésima Página e à Capela Árvore da Vida – bem escondida no interior do Seminário de São Pedro e São Paulo; as paredes forradas a livros e a madeira habilmente encaixada daquele pequeno templo contemporâneo dão bons tesouros fotográficos e criam um roteiro alternativo, mais pessoal. 

Numa zona tão densamente povoada, é quase milagroso ver surgir pequenos oásis naturais, como acontece com as praias fluviais de Adaúfe, às portas de Braga, e do Arnado, já em Ponte de Lima. Esta antiga vila é um lugar onde cheguei muitas vezes e de onde nunca quero partir. Talvez pelos caiaques que deslizam rio abaixo, rio acima, nos treinos de fim de tarde, pelas iguarias minhotas que continuam a servir-se nas vielas estreitas, ou pela sua dimensão humana – no sentido físico e filosófico -, esta seria também uma ótima opção para o fim do Caminho.  

Quando fez esta viagem, no século XVIII, Diego de Torres entrou e saiu de Portugal através dos mesmos povoados fortificados que também visito: primeiro Almeida e agora Valença. Podia ficar dias a explorar cada recanto desta última praça-forte portuguesa, mas bastou-me a luz suave e a insólita “aparição” de um cavalo entre as muralhas para achar que já tinha a fotografia certa deste ponto do percurso. No mesmo dia segui para Tui, com a sua imponente catedral a guardar a margem galega do Minho.

Do português ao galego vai uma distância mais curta do que a ponte metálica que cruza o rio. É assim, neste idioma-berço da minha língua, que a vendedora do mercado de Padrón me explica a origem dos pequenos pimentos que deram fama à localidade, enquanto os escolhe na grande cesta que tem no colo.  

Pouco antes, na Enseada de San Simón, tinha finalmente tocado o mar e comprovado o número crescente de peregrinos que se dirigia a Pontevedra e Caldas de Reis. Por uma questão óbvia do tema que me ocupa, ou de simples efeito de escala, procuro antecipar os seus passos e fotografá-los junto às igrejas ou quando atravessam pontos particularmente bonitos, sobretudo durante a manhã. Neste início de verão, as tardes já vão quentes e após o almoço a maioria recolhe aos albergues para descansar da caminhada que iniciou ainda de madrugada.

Aproximo-me do destino. As vinhas estão vestidas de verde fresco e sente-se o ar húmido que vem da costa. Os estrangeiros colecionam garrafas de albariño sobre as mesas dos cafés, enquanto o crepúsculo vai entrando comigo pelas vielas de Santiago de Compostela. A cidade está animada. Por todo o lado surgem palcos improvisados, luzes às cores e fardos de palha a fazer de bancos; preparam-se fogueiras, petiscos e ecoam tambores e gaitas galegas: é o San Xoán.

Dou os derradeiros passos até à Praça do Obradoiro e descanso finalmente os olhos na Catedral. Sob uma réstia de luz, vejo uma menina de roupa colorida ensaiar passos de dança no meio deste palco do mundo. Aponto a câmara e faço uma última foto. 

António Sá

La exposición «Caminho de Torres: Uma viagem fotográfica», de António Sá, puede visitarse en la ventana virtual abierta en la web www.espaciofronteira.eu

Las imágenes del proyecto Caminho de Santiago-Caminho de Torres, han sido cedidas por la Comunidade Intermunicipal do Ave,  y cofinanciadas por el Programa Norte 2020 y el FEDER.

NORCYL2020 es un proyecto INTERREG.

IMAGENS: «Caminho de Torres: Uma viagem fotográfica», de António Sá

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