Fotografar a Lenda: Notas de um fotógrafo

A fotografia foi inventada como um sistema químico-óptico para o registo do real. A fotografia seria capaz de registar de forma mecânica e objectiva o mundo. Não por acaso se chamam as lentes de objectivas. Uma linguagem visual directa, universal, uma espécie de esperanto visual, que todos compreenderiam, tornando o real documentável. Um real a duas dimensões é certo, e a princípio apenas monocromático, mas que rapidamente adquiriria a cor, e recentemente o 3D, se não considerarmos as máquinas estereoscópicas, de que Aurélio da Paz dos Reis, fotógrafo notável do Porto do fim do século XIX, tanto gostava, e com que fotografou, por exemplo, a epidemia de Peste Bubónica no Porto em 1899, imagens que hoje tanto nos impressionam.

Com a fotografia passaríamos a ter documentos visuais, que permitiriam (re)ver o que um dia acontecera, como se lá tivéssemos estado. A fotografia como um espelho com memória, como um dia escreveu, Oliver Wendell Holmes, médico, escritor, poeta, divulgador científico e apaixonado pela imagem fotográfica, cuja descoberta acompanhou, para conseguir explicar, a quem nunca vira um daguerreótipo, o que era.

A fotografia, como um espelho com memória, capaz de guardar dentro de si a história total do mundo, ou, pelo menos, a história visível, porque na história também há camadas, às quais a retina humana não é sensível.

A fotografia como registo da memória, mas ao mesmo tempo como máquina de replicação sem limites dessa memória, capacidade que o processo negativo concedeu.

E a fotografia também como instrumento de arquivo. Memórias para serem guardadas, para serem consultadas. Arquivo de mil possibilidades, ferramenta para erigir, como nos desejos/sonhos de Borges, uma espécie de biblioteca infinita: não era isso afinal o projecto “Museu Imaginário” de Malraux? Uma colecção que juntaria fotografias de todos os objectos de arte, criando desta forma um museu universal, que poderia ser facilmente replicado em todos os lugares do mundo, onde todo o património artístico da humanidade estaria disponível aos visitantes.

Mas a fotografia depressa questionaria essa dimensão documental absoluta, espartilhada, e adquiriria uma dimensão subjectiva, autoral. Fotografia como forma de expressão, como território a ser lavrado e semeado pela sensibilidade de cada fotógrafo, para trazer ao nosso caos novas variedades.

O artista traz do caos variedades, que já não são uma reprodução do sensível no órgão, mas erigem um ser do sensível, um ser da sensação, sobre um plano de composição, anorgânica, capaz de restituir o infinito…

Gilles Deleuze – Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, 1991, trad. autor

A fotografia como instrumento para esculpir um “mundo dentro do mundo” como escreveria Mário Dionísio em A Paleta e o Mundo.

E que somos, no entanto, ricos bastante de imaginação e audácia e força criadora para produzirmos com a própria realidade que criámos uma nova realidade que a alarga e enriquece, uma ilusão que se transforma em vida, um mundo dentro do mundo.

Se não fosse assim, como desafiar um grupo de fotógrafos, com ligações afectivas à região, a vir às terras da raia, para fotografar a lenda do Bizarril, pequena aldeia do concelho de Figueira de Castelo Rodrigo?

Existem na realidade várias versões da lenda que nos conta a história da Capela de Nossa Senhora de Monforte no Bizarril. Cada uma procura responder à questão “Porque foi construída naquele lugar ermo aquela capela?”. Cada versão da história conterá elementos reais ou alegóricos de uma história longínqua, que envolve a luta daquela gente pela sobrevivência num território inóspito.

Este projecto aconteceu porque acreditamos que é possível contar histórias com a fotografia. Fizemo-lo porque pensamos que a fotografia pode realmente dar um contributo na defesa de um património material e imaterial riquíssimos, não só no plano do registo documental, mas também no plano da ficção autoral. Cruzámos as margens do Côa, do Águeda e do Douro, mergulhámos neste território mágico para fotografar a lenda do Bizarril.

Cada fotógrafo fotografou o território e criou uma série pessoal; assumimos a responsabilidade de seleccionar e de criar uma série multifacetada, mas coerente e coesa, reunindo duas fotografias de cada um.

Rui Campos situa-nos. Estamos no território mágico do Côa. Da Capela de Nossa Senhora de Monforte e das ruínas do Castelo vê-se o rio a correr, lá no fundo, sinuoso, entre fragas. Bizarril fica perto, um pouco mais para cima, para o lado da raia. Com Filipe Carneiro chegamos finalmente à região entre Coa e Águeda, vemos a paisagem rude, que nos engole, através do pára-brisas, que metaforiza a objectiva fotográfica. A Sofia Aroso aponta-nos o caminho. Subimos à procura. Subimos, lentamente, até ao cimo. E estamos no Bizarrill, terra já quase sem gente, de casas engolidas pela paisagem. A luz e a sombra de Rui Campos parecem desenhar um mapa para a nossa viagem.

E chegamos finalmente à Capela de Nossa Senhora de Monforte com Augusto Lemos, António Martins Teixeira e Filipe Carneiro. Uma capela espreguiçada sobre o Côa, que corporiza as lendas que nos atrevíamos a tentar fotografar. Adelino Marques parece mostrar-nos já uma capela que nos foge e se esconde por detrás dessas lendas, que lhe dão razão de ser. Lá no fundo entre arribas alcantiladas continua a correr o rio Côa. Renato Roque parece poder materializar na sua imagem a praga de gafanhotos, que se abateu sobre o território, destruindo as colheitas de gente pobre, que delas dependia para sobreviver. Praga que ameaça, mas, ao mesmo tempo, justifica a capela, que se adivinha.

António Martins Teixeira leva-nos ainda mais acima, ao Castelo de Monforte. Castelo quase desaparecido. A inscrição na pedra em granito dos Serviços Cadastrais do Exército marca o lugar. O n.º 171 é o número da folha da Carta Militar de Portugal. A paisagem de Adelino Marques sugere a visão dos campos de batalha dos tempos do reino de Leão. Renato Roque e Jorge Pedra abrem-nos as portas do reino das pedras, em que o milagre da lenda teria transformado os gafanhotos que dizimavam o cereal. Mergulhamos num território de penedos, esculturas maravilhosas que nos assombram. António J. Gonçalves adensa-nos esse mundo de penedio, dentro de uma escuridão inquietante, mergulhado num território feito de sombras e de ausências.

Sombras e ausências que podem tão bem representar a relação entre a lenda e a história. As pedras são sinais, são marcas da história, são protagonistas de lendas. Percorremos o território do deus Hermes, protector de mercadores e de viajantes – as pedras eram indicadores de caminhos seguros – e do deus Término, protector das fronteiras: fronteiras antigas com Leão, fronteiras recentes com Castela, como nos conta a arqueóloga Filomena Barata no seu texto. Jorge Velhote parece revelar-nos numa bola de cristal, que parece flutuar, pousada sobre uma laje junto à muralha do castelo, um futuro melhor para esta terra esquecida. Um futuro construído sobre um passado que queremos conhecer. E Conceição Magalhães oferece-nos porventura as mais poéticas das imagens. Como se só na poesia pudéssemos ser capazes de reencontrar e de compreender a magia desta terra.

Renato Roque


La exposición «Fotografar a Lenda», puede visitarse en la ventana virtual abierta en la web www.espaciofronteira.eu

O projecto fez parte dos “Cadernos de Património” nº1 da Associação Ribacvdana. Financiado pela Comunidade de Trabalho Castela e Leão-Centro de Portugal, e pelo FEDER.

CENCYL Fronteira es un proyecto INTERREG.

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