Nos caminhos transfronteiriços

É com um redobrado prazer que participo, em nome da RIONOR, em mais um PAN, evento que é legítimo apelidar de autêntica partilha transfronteiriça. Para os seus responsáveis, nomeadamente o seu grande mentor, o Alcalde Manuel Ambrosio Sánchez, aqui ficam os meus sinceros agradecimentos.

El PAN es un encuentro festivo y de convivencia entre creadores (poetas, artistas y especialistas de diversos campos y disciplinas) y vecinos y visitantes de Morille (Salamanca) y una freguesía o concelho luso, que se celebra cada año durante dos fines de semana del mes de julio.

Sugestionado pela metáfora que se pressente no tema do ano em curso e em que se inscreve o título que os organizadores me propuseram, “A RIONOR nos Caminhos Transfronteiriços”, decidi partilhar convosco algumas reflexões avulsas que me vieram ao pensamento enquanto deambulava pelos trilhos raianos. E como as ideias são como as cerejas, o meu pensamento acabou por desembocar no grande poeta Fernando Pessoa, cujo raciocínio lúcido também errou pelas encruzilhadas ibéricas.

«Caminhos-Caminos» fue el lema del PAN 2018 (Encuentro y Festival transfronterizo de Poesía, Patrimonio y Arte de Vanguardia en el Medio Rural).

Estou convencido que a situação dos territórios raianos só muda quando os cidadãos tomarem consciência da necessidade de participarem ativamente na vida social e política, tese que arrasta consigo grandes desafios. Um desses reptos é o de romper com a visão derrotista que se instalou em muitos de nós e que nos impede de ver e de procurar soluções para os problemas que nos afetam.

Ensinou-me a vida, quando me defrontei com a limitação sensorial de não ver, se queria integrar-me socialmente, sem dúvida a aspiração fundamental de cada um de nós na medida em que são os outros que nos tornam humanos, tinha de romper com determinados sentimentos que invadem todos os que são afetados por limitações graves, como o refúgio na comiseração, no coitadinho ou no “pobre de mim”, como dizia com eloquência o velho Fernão Mendes Pinto, esse rasgador de caminhos, na lendária epopeia que é a sua incontornável Peregrinação.

De igual modo, para inverter a atual situação dos raianos, um dos primeiros passos a dar é o de evitar a todo o custo cair na armadilha da vitimização, de que somos poucos, envelhecidos e incapazes de resolver os nossos próprios problemas. Temos de aceitar sem ambiguidades que somos os que somos e que temos o direito de habitar os territórios entre os montes. Por outro lado, para contrariar a badalada visão negativista do mundo rural, temos de valorizar os grandes atrativos que possuem estes territórios onde podemos ter uma vida digna e feliz.

A ilustrar este passo posso relatar alguns factos paradigmáticos com que o convívio social me brinda a todo o momento. Em Trás-os-Montes encontro pessoas desgostosas por não viverem numa grande cidade, repetindo à saciedade que isto aqui é um atraso de vida. De igual modo, quando passeio na grande cidade, encontro pessoas apressadas e a suspirar por uma vida sossegada que só o mundo rural lhes pode dar.

Descobri ecos destas aporias da insatisfação humana no poema dramático “O Marinheiro” de Fernando Pessoa e convido-vos a seguir comigo algumas passagens memoráveis que é sempre um deleite renovado revisitar. Peço ao Alcalde Manuel Ambrosio que as leia em castelhano que a minha ousadia de as traduzir não vai tão longe.

SEGUNDA ‑ Todo este país é muito triste… Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. […] PRIMEIRA ‑ Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!… O mar de outras terras é belo? SEGUNDA ‑ Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos dá‑nos sempre saudades daquele que não veremos nunca… […] PRIMEIRA ‑ Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo Dezembros na alma… Estou procurando não olhar para a janela… Sei que de lá se vêem, ao longe, montes… Eu fui feliz para além de montes, outrora… […] SEGUNDA – […] Dos montes é que eu tenho medo… É impossível que eles sejam tão parados e grandes… Devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que têm… […] PRIMEIRA ‑ Por mim, amo os montes… Do lado de cá de todos os montes é que a vida é sempre feia… […] SEGUNDA ‑ Tudo deixa descontente, minha irmã… Os homens que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-no, porque mudam com tudo… De eterno e belo há apenas o sonho… Por que estamos nós falando ainda?… PRIMEIRA ‑ Não sei… Por que é que se morre? SEGUNDA‑ Talvez por não se sonhar bastante…

«O Marinheiro (drama estático em um quadro)» Fernando Pessoa

Temos aqui, com uma clareza apolínea, a saída para os nossos problemas. A receita é simples e está à mão de todos nós: temos de sonhar, de construir o nosso futuro onírico, acreditando com firmeza que só o sonho é eterno e belo e que nos pode libertar da morte.

A RIONOR começou com construtores de sonhos que têm prosseguido com grande afã na arte de sonhar e os frutos começam a antever-se reais e promissores.

No dia 1 de outubro de 2016, em Rio de Onor, propusemo-nos aprofundar a cooperação transfronteiriça através da criação de uma escola viva de cidadania e de uma massa crítica geradora de conhecimentos de forma a intervir na realidade social raiana.

Temos de nos convencer que de nada vale gritar contra os políticos e de responsabilizar sempre os outros pelos nossos males. Não duvidamos que o atual estado a que chegou o mundo rural se ficou a dever a todos nós que o habitamos. Aprendemos nos conselhos raianos que a diferença e a mudança está na mão dos cidadãos. Se não formos nós os raianos a lutar por tudo aquilo que nos diz respeito, ninguém o fará por nós.

É urgente defender os valores da solidariedade através de um associativismo ativo e democrático que mostre aos cidadãos as vantagens de dedicar parte do nosso tempo ao bem público, compreendendo que esse é o caminho melhor para construir um mundo mais justo e mais humano.

Muitos costumam questionar-nos sobre os resultados práticos a que chegou a RIONOR. São eloquentes alguns desses questionamentos, sobretudo pelo que deixam antever. Perguntava-me um agricultor que participou na Marcha das Cantarinhas: “Então afinal com a Marcha não resolvemos nada e gastei eu dinheiro para participar!”. Outro comerciante de Bragança interpelou-me: Então a RIONOR já conseguiu alguma coisa? Disseram-me que afinal o comboio já não vai parar na Puebla!”.

Sabíamos que a criação de uma Associação que apela à participação dos cidadãos se defrontava com grandes obstáculos entre nós, mas afinal acarreta ainda um outro de cuja existência nem suspeitávamos: afinal os cidadãos não querem construir o futuro com as suas próprias mãos, mas anseiam por um D. Sebastião que lhes resolva os problemas de uma assentada, ainda que esse D. Sebastião se chame RIONOR!.

Relativamente à questão dos resultados práticos, direi que a RIONOR não se constituiu para salvar sozinha o mundo ou para executar políticas alternativas. A RIONOR pretende mobilizar a sociedade civil na defesa do direito a habitar os territórios raianos de forma a constituir uma opinião pública coesa e interventiva. Com o nosso trabalho conseguimos já delinear medidas de futuro que a serem concretizadas revitalizarão económica e demograficamente estes territórios. Referimo-nos a algumas resoluções saídas dos conselhos raianos sobre a acessibilidade tais como conexões rodo e ferroviárias que liguem Trás-os-Montes a Castela e Leão, um aeroporto regional, redes digitais de comunicação de dados entre os dois lados da fronteira e o Douro como via fluvial aberta à circulação de pessoas e de mercadorias. Para além deste trabalho sério, conseguimos ainda inscrever algumas destas medidas na agenda política e mediática, na medida em que nos últimos dias foram aprovadas em instâncias como a CIM-TTM e o Eixo Atlântico, facto que nos deixa sinceramente orgulhosos.

A ser verdade que de eterno e belo só há o sonho e que só com o sonho evitaremos a morte, então nunca nos podemos cansar de sonhar, porque o sonho nos permite rasgar um futuro digno para todos os raianos. Por favor juntem-se a nós e ajudem-nos a sonhar futuros de um habitar digno como um tributo e um direito estes territórios que se estendem entre os nossos queridos montes. Obrigado.

Francisco Alves

Presidente da RIONOR (Rede Ibérica Ocidental para uma Nova Ordenação Raiana)

IMAGEM: Ruta jacobea Vía de la Plata a su paso por Morille – Salamanca (www.viadelaplata.info)

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